As Sem Abrigo de Lisboa

http://repositorioaberto.univ-ab.pt/handle/10400.2/1258

As Mulheres Como Categoria de Investigação*

“As sem abrigo de Lisboa” constituem o objecto deste estudo. A breve introdução que se segue torna-se necessária para o mais vasto entendimento do fenómeno social da pobreza quando se manifesta nas mulheres em geral e nas sem abrigo em particular.

Este trabalho insere-se no âmbito das ciências sociais e, em particular, na área dos estudos sobre mulheres. Para esclarecer o enquadramento da temática é importante relacionar a teoria das representações sociais e o género.

Representações sociais e identidades sociais devem ser equacionadas em conjunto para entender o processo de aquisição e manutenção da identidade de género (Amâncio, 1999). Estas representações e identidades não surgem num vácuo, antes são formadas a partir de um universo simbólico de valores (Guillaumin, 1992), que opõe natureza e cultura e separa os sexos, associando-os aos pólos desta dicotomia.

Os Estudos sobre as Mulheres inscrevem-se pois, num movimento mais amplo de desconstrução que é inerente ao próprio exercício do pensamento na sua tarefa de sempre, de crítica e criação de novos conceitos (Joaquim, 2004).

A investigação sobre mulheres é algo relativamente recente. O século XX traz visibilidade às questões de género e são as próprias mulheres, sobretudo no mundo ocidental, que reconhecem a importância de participar na vida económica, política, social e cultural da sociedade onde se encontram inseridas.

Joaquim (2004), fala dos feminismos e dos estudos sobre as mulheres como “formas diversas de poder habitar a teoria e as práticas de outro modo. De reler as experiências múltiplas das mulheres, algumas na sua insignificância, dando-lhes sentido e daí possibilidades de vida, de serem passíveis de serem transmitidas como herança às gerações vindouras, herança feita da passagem do testemunho entre as feministas da geração do início do século passado e as mulheres que se afirmaram pós 25 de Abril de 1974, ou ainda ausência de transmissão entre as mulheres da oposição ao Estado Novo e as do pós 25 de Abril” (Joaquim, 2004, p.89).

A mesma autora acrescenta ainda que os estudos, sobre as mulheres são um “avanço histórico que deve ser integrado no contexto do desenvolvimento das Ciências Sociais e do feminismo em Portugal” (Joaquim, 2004, p.89).

O conceito de género não está necessariamente vinculado ao sexo. Género é construção social do sujeito masculino ou feminino. Nesse sentido, Joan Scott (1989, cit. in fisher, et al., 2001), associa a categoria género aos limites das correntes teóricas do patriarcado, do marxismo e da psicanálise, tenta explicar a subordinação da mulher e a dominação dos homens. Aquela autora analisa o conceito de género como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos e como a primeira forma de manifestar poder a partir de quatro dimensões inter-relacionais: simbólica, organizacional, normativa e subjectiva.


Ana Martins em directo no sociedade Civil falando sobre Pobreza e


Sem Abrigo

A mesma autora fundamenta a sua abordagem em relação ao conceito de género da seguinte forma:

As relações de género possuem uma dinâmica própria, mas também se articulam com outras formas de dominação e desigualdades sociais (raça, etnia, classe).

A perspectiva de género permite entender as relações sociais entre homens e mulheres, o que pressupõe mudanças e permanências, desconstruções, reconstrução de elementos simbólicos, imagens, práticas, comportamentos, normas, valores e representações.

A categoria género reforça o estudo da história social, ao mostrar que as relações afectivas, amorosas e sexuais não se constituem realidades naturais.

A condição de género legitimada socialmente assenta em construções, imagens, referências de que as pessoas dispõem, de maneira particular, em suas relações concretas com o mundo. Homens e mulheres elaboram combinações e arranjos de acordo com as necessidades concretas de suas vidas.

As relações de género, como relações de poder, são marcadas por hierarquias, obediências e desigualdades. Estão presentes os conflitos, tensões, negociações, alianças, seja através da manutenção dos poderes masculinos, seja na luta das mulheres pela ampliação e busca do poder.

Lorenzi-Cioldi (1988, cit. in Costa et al., 1997), refere que no domínio da sociologia, os estudos de Parsons e Bales (1955) contribuíram para sublinhar as ideias existentes entre, os papeis atribuídos a cada um dos sexos. Mostravam diferenças nas orientações de papéis com carácter instrumental (masculino) e papéis com carácter expressivo (feminino) no seio da família. Segundo estes autores, o homem é visto como possuindo com maior abundância características auto-directivas e orientadas para objectivos tais como independência, assertividade e poder de decisão, qualidades essas que lhe permitem desempenhar o seu papel, quer na família, quer nos contextos extra-familiares.

Ainda segundo os mesmos autores, as mulheres, por sua vez, são vistas como possuindo qualidades mais orientadas para as relações inter-pessoais tais como simpatia, sensibilidade para com os outros e necessidade de afiliação. Assim, a orientação instrumental remete para a adopção de papéis onde predominam a autonomia individual, a independência, o sentimento de dominar o ambiente, bem como a competição. Pelo contrário, a orientação expressiva reflecte a comunhão como outro, o desejo de estabelecer laços e a consciência e expressão de sentimentos pessoais.

Segundo Moreno (2003), o conceito de identidade é fundamental no contexto das teorias mais recentes, pois ele medeia dois níveis, o das estruturas sociais e o das acções dos indivíduos. No conjunto das interacções desenvolvidas entre os actores sociais em contextos sociais, culturais e laborais específicos, ocorre um processo de construção da subjectividade (que inclui a sua personalidade, valores, atitudes e crenças). É através destas interacções que os indivíduos constroem a sua estrutura pessoal e social.

O discurso sobre os direitos das mulheres valoriza-se e difunde-se particularmente no séc. XIX, sobretudo no final e princípios do século, numa história que é conhecida de tod(a)os e que envolve as feministas e organizações de mulheres da I República, sendo as grandes linhas na defesa e reivindicação desses direitos políticos, particularmente o voto, o direito ao trabalho e à independência económica e, acima de tudo, o direito à educação (Silva, 1993).

Ao longo da história, houve duas grandes e determinantes distinções em termos de actividade humana. Por um lado, uma que se movimentava e agia, trabalhava sobretudo dentro de casa, no domínio privado e, portanto, invisível e pouco valorizado pela sociedade, acção essa que tinha como protagonistas pessoas do sexo feminino, e por outro lado, temos as actividades profissionais (trabalho), que se realizam fora de casa, num contexto público, visíveis e que valorizam quem os faz. Estas são dominantemente realizadas pelo homem.

Desta realidade resultou uma impossibilidade de a mulher participar na construção e na realização de formas de exercício de cidadania que foram sistematicamente realizadas por homens, num contexto de conformismo por parte de ambos os sexos em relação a esta divisão de domínios de intervenção.

Alguns autores dizem que esta situação foi determinante na subordinação da mulher ao homem, que se traduz nomeadamente na subalternização no trabalho, na família e noutros domínios societais.

A evolução social das últimas décadas veio questionar esta situação: grandes alterações se registaram no comportamento e interacção entre homens e mulheres questionando os modelos dominantes e estereotipados. As elevadas taxas actividade feminina, fora de casa, de âmbito público e, portanto, mais visível, registaram um acréscimo significativo desde os anos 60.

Torres (2002), refere que diversos estudos revelaram, que a partir dos anos 60, por razões ideológicas e porque o modelo ideal era, até então, o da mulher dedicada à casa e aos filhos, a extensão e o volume da participação na actividade económica directa ou indirecta em que estavam envolvidas muitas mulheres tendiam a ser obscurecidos. No caso português, segundo a autora, foi nítida essa invisibilidade do trabalho exterior feminino no que dizia respeito à agricultura, aos serviços domésticos e mesmo ao trabalho fabril, que não tinham expressão, por vezes de forma nítida, nas estatísticas. Ainda segundo a mesma autora, sem dúvida que existia um grupo restrito de mulheres burguesas que punham em prática o “modelo ideal”, e também posteriormente, as classes médias que usufruíram até muito tarde, de mão-de-obra de serviço doméstico barata e abundante.


Actualmente, as mulheres portuguesas têm das mais elevadas taxas de actividade da Europa - este dado ganha mais importância pois sabemos tratar-se de trabalho a tempo inteiro: 60 em cada 100 mulheres, em média, trabalham fora de casa (há 3 décadas o mesmo indicador rondava os 19%). Estas taxas crescem no que diz respeito às mulheres mais jovens (Almeida, 1998).

Os números nem sempre mostram a realidade que lhes está subjacente. Na verdade, e embora a participação da mulher no mundo do trabalho tenha aumentado nas últimas décadas, a qualidade do mesmo nem sempre legitima a igualdade de oportunidades que tanto se apregoa nas sociedades ocidentais.

Silva (1999), alertou para o facto de que se nos movermos do espaço público para o privado, designadamente o da vida familiar, a situação de desigualdade mantêm-se. É que, não obstante todo o empenho posto na afirmação pública do princípio da repartição equitativa das tarefas domésticas e da co-responsabilização paritária pela educação das crianças, continua a depender, de facto, sobre as mulheres o maior peso desses encargos. Silva acrescenta ainda o facto de ser particularmente notório que, em caso de conflito de interesses entre a vida pública e privada, é a mulher que quase sempre acaba por sacrificar o público ao privado, enquanto a posição do homem tendencialmente se inverte.

Assim, se no contexto familiar, é claramente a divisão desigual de tarefas e responsabilidades entre homens e mulheres que muitas vezes limita o maior investimento feminino na profissão, interferem também mecanismos externos à vida familiar, como os que se geram no contexto profissional, que reforçam essas mesmas limitações. Esta situação permite sublinhar a consistência teórica da proposta que considera que os efeitos de género atravessam os diferentes domínios da vida social, do privado ao público, da família ao trabalho, produzindo a discriminação feminina. Outra forma de dizer que existe uma divisão sexual e social do trabalho que condiciona os lugares ocupados por homens e por mulheres nos diferentes domínios da vida social.

Dos anos 60 para cá assistimos, em Portugal como na maioria dos países ocidentais, simultaneamente a um certo desgaste do modelo ideal de domesticidade das mulheres e à generalização da actividade feminina no mercado de trabalho em quase todas as áreas e sectores sociais. Mas este processo só foi mais explícito no nosso país a partir dos anos 70.

Segundo Torres (2005) o factor trabalho é determinante na integração e na igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, sendo importante fazer referência ao mesmo, de modo a melhor entendermos a realidade das mulheres no contexto sócio-económico, acrescenta ainda, que este factor, sempre se torna mais absoluto e irreversível à medida que vamos diminuindo no nível das variáveis da escolaridade, da estabilidade no trabalho, baixos salários, no acesso à saúde, à habitação e a outras dimensões de integração social.

As mulheres na situação de sem abrigo reúnem um conjunto amplo e heterogéneo de variáveis intimamente relacionadas com a pobreza. Quaisquer das dimensões de integração social acima referidas por Torres, fazem parte intrínseca da situação de mulher sem abrigo. Trata-se de um grupo de pessoas na situação de extrema pobreza e exclusão. Sendo particularmente atingido por uma grande desigualdade no acesso ao emprego, à saúde, à educação, habitação, cultura, desporto entre outros aspectos relacionados com dimensões de bem estar social.

* Texto retirado da minha tese de mestrado intitulada "As Sem Abrigo de Lisboa"
O estudo, elaborado pela investigadora Ana Ferreira Martins, venceu o prémio municipal Madalena Barbosa, de promoção da igualdade de género.

https://www.facebook.com/events/128959390955875/



 

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