No último ano de vida elabora um Diário, onde deixará anotações até escassos dias antes do trágico fim. Prefácio a esse fim.
Logo no início explica não ter qualquer objetivo ao escrevê-lo.
Pouco depois do começo espera que "quando morrer é possível que alguém" ao lê-lo "se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão," sobre o que foi ou julgou ser. "E realize o que eu não pude: conhecer-me".
FLORBELA D'ALMA DA CONCEIÇÃO LOBO ESPANCA.
Espanca, nasceu no Alentejo, em Vila Viçosa, a 8 de Dezembro de 1894.
Era filha de Antónia da Conceição Lobo e de João Maria Espanca. João Maria era casado com Maria Toscano, mas, como deste casamento não houvesse filhos, o Espanca estabeleceu uma relação com a Antónia (criada de servir) e dessa relação nasceram dois filhos: Florbela e Apeles.
Note-se ainda que o pai, que sempre a acompanhou, só 19 anos após a morte da poetisa a perfilhou, por altura da inauguração do seu busto em Évora, debaixo de cerrada insistência de um grupo de Florbelianos.
Ao atingir a idade escolar, Florbela frequenta o estabelecimento de ensino Dona Ana Locádia, em Vila Viçosa. Ao concluir a 4ª classe, transita para a escola secundária do professor Romeu que frequenta até concluir o 3º ano, o que acontece até 1907. No 4º ano vai para Évora para o Liceu André de Gouveia. Com ela vai toda a família que se instala na Rua de Avis, nº16.
Florbela foi das primeiras mulheres a frequentar o liceu Eborense o que não agradava sobretudo aos professores. Foi aluna do Liceu de Évora até 1912. Esta situação de uma mulher ter acesso ao ensino secundário não era muito bem vista na altura, tendo revelado alguma coragem da parte de Florbela.
Em 8 de Dezembro de 1913 (o dia dos seus 19 anos) casa-se civilmente com Alberto Moutinho, seu colega de liceu. Mais tarde vai estudar para Lisboa, frequentando a Faculdade de Direito. (Em 1913 licenciou-se a primeira mulher em direito).
Casou-se três vezes, não parecendo ter encontrado a felicidade em nenhum deles, pois todos tiveram um rápido fim.
Com 31 anos casa-se pela 3ª vez com Mário Lage, as coisas não correram bem e teve uma outra ligação com Luís Maria Cabral, médico e pianista, com quem não chegou a casar.
Apeles Espanca, irmão de Florbela é um personagem transversal no decorrer da sua vida. Da correspondência que a poetisa nos deixou fica-nos a ideia de que o grande amor de sua vida foi unicamente o seu irmão.
Numa das cartas que lhe escreveu, Florbela diz: "Peço-te que te lembres que sem ti não posso ser feliz nunca mais".
Em 6 de Junho de 1927, Apeles Espanca morre, quando o avião em que seguia se despenha nas águas do Tejo. A partir daí, a poetisa já não voltou a ser o que era. Numa carta que escreve ao pai, desabafa: "Não me sinto nada bem e estou magríssima... Estou uma velha cheia de cabelos brancos e sem vontade para nada".
Em Agosto de 1928, cerca de um ano depois da morte do irmão, Florbela Espanca tenta suicidar-se. Segue-se uma segunda tentativa de suicídio em Novembro de 1930. No dia 8 de Dezembro desse mesmo ano, no dia do seu aniversário, foi encontrada morta num quarto em Matosinhos. Debaixo do colchão foram encontrados dois frascos de Veronal, ou seja do fármaco que tomava para conseguir dormir.
Numa carta datada de 16 de Junho de 1916, a poetisa escreve: "Sou triste, duma tristeza amarga e doentia que a mim própria me faz rir" (...) "Tenho dias em que as pessoas me dão a impressão de pequeninas figuras de papel sem expressão e sem vida" (...) "Eu sou insaciável, mal um desejo surge, outro desponta e em mim há sempre latente a febre do sonho e do desejo".
O Amor foi a principal tragédia de Florbela Espanca, mas não foi a única. A doença agravada pelo drama amoroso, foi outro doloroso calvário que a poetisa teve de percorrer, e que, se outro bem não teve, lhe inspirou, pelo menos, versos sublimes, embora repassados de pessimismo e desalento. Florbela soube fazer da sua dor um poema!
Essa neurastenia, com forte dose de histerismo, agravou-se e, por sua vez, agravou a doença pulmonar, manifestada aos 14 anos, em 1908 e da qual nunca se curou totalmente. O Dr. Celestino David observa que: "Os nervos agravaram-lhe a doença; a doença afina-lhe os nervos".
Desde muito nova Florbela escrevia, aos 8 anos já fazia versos! E fê-los até à morte. Foi a sua vocação e paixão literária. As maiores fontes de inspiração poética de Florbela Espanca foram, a natural propensão para a poesia; a Dor; a paisagem alentejana e, sobretudo, o Amor.
FLORBELA MULHER
Como dizem vários estudiosos da sua pessoa e obra, Florbela surge desligada de preocupações de conteúdo humanista ou social. Inserida no seu mundo pequeno burguês, como evidencia nos vários retratos que faz de si própria ao longo dos seus escritos.
Florbela foi em muitos aspetos da sua vida uma mulher diferente da maioria da sua época. Frequentou o Liceu numa época em que não era comum as mulheres fazê-lo, os próprios professores não viam com muito bons olhos esta situação. Frequentou a faculdade de direito já depois de casada, o que também não era muito frequente. Poucas mulheres chegavam à universidade e quando o faziam deixavam os estudo aquando do casamento.
Casou três vezes, em 15 anos, o que para a época foi um comportamento que não correspondia de todo aos canons considerados normais aos homens e muito menos às mulheres da sua altura. O facto de nunca ter tido filhos também não era comum.
Após os vários casamentos, diz desejar morrer virginalmente. Desejo que terá subjacente uma moral que interditava à mulher exprimir o seu prazer sexual,. As sugestões mais ousadas sobre sexo eram tidas como degradação ou, complacentemente, como provocação.
Todos estes aspetos práticos da sua vivência social não contribuíram de forma alguma para a reprodução dos modelos vigentes e estereotipados na conduta feminina.
Poderia Florbela como a maior parte dos analistas referem não ter manifestado através da sua escrita preocupações sociais ou políticas, mas através dos seus comportamentos mostrou ser um ser humano determinado em seguir os seus desejos e o seu próprio caminho independentemente das normas bastante apertadas no que diziam respeito às mulheres. Tendo rompido com a maioria. De certa forma fez questão de ignorar de passar ao lado de modelos estereotipados e de preconceitos próprios da sociedade burguesa em que se encontrava inserida.
O exemplo de autonomia como ser humano e em particular como mulher que Florbela passa para a sociedade da sua altura, é revelador da sua coragem, rebeldia e autonomia perante a moral e as normas vigentes.
Durante a sua vida deu mais importância à sua realização pessoal como indivíduo, através do conhecimento, (estudando), das suas relações amorosas e afetuosas e sobretudo através da sua poesia. Aí, sim Florbela conseguiu manifestar-se na sua individualidade mais profunda.
É certo que todo este comportamento que a fazia ser diferente de todas as mulheres da sua altura, contribuiu, para o seu isolamento e dor. Ela raramente alude ao exterior como causa para a sua dor. Atribui o seu sofrimento à sua alma inteligente e insatisfeita por natureza. Sempre em busca do que é novo e tendo-o conseguido recomeça uma nova busca, procurando um novo desafio.
A partir do momento em que sente que já não há palavras novas nem sentimentos novos, decide acabar com o que para ela parece já não fazer sentido, a vida.
REFLEXÕES SOBRE O DIÁRIO DE FLORBELA ESPANCA
Florbela inicia o seu diário deixando explicito que pretende “atirar para aqui”, o que os outros não “recolhem”: “reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir”, deixando implícito a sua exclusividade em se aperceber e descodificar certo tipo de expressões humanas.
Perante os paradoxos da sua alma, mostra-se desacreditada “compreendi por fim que nada compreendi” perante esta impossibilidade de se compreender a si própria e aos outros, mostra alguma esperança em vir a fazê-lo através do olhar dos outros e assim aceder ao seu ser “misterioso, intangível, secreto”.
Fala do imprevisto, referindo-se a ele como um deus frívolo que cobre as mulheres com lindos mantos, fazendo a alusão à cor, cor de rosa. Este Deus de que fala, embora próximo de si, por esta dizer, lhe conhecer todos os fios, é para ela um “Deus Fantoche”.
A sinceridade parece ser importante para Florbela, sobretudo a sinceridade para consigo própria, juntando ao conceito de sinceridade o de coragem. “O que tu foste, só tu o sabes: uma corajosa rapariga, sempre sincera para consigo mesma”
Revela um entendimento do ser humano na sua generalidade como praticante de atos covardes, colocando-se à margem dos mesmos e marcando a sua diferença, “ Não há na tua vida um só ato covarde, pois não? Então que mais queres, num mundo em que toda a gente o é mais ou menos?”.
Reclama para si atributos de alto valor humano, tais como: honestidade, castidade, retidão, vivacidade, amorosidade, sem preconceitos e sem luxúria. Esta auto-imagem que tem de si própria, eleva-a um mundo só dela, em que tudo o que é humano lhe parece menos bom.
Existe, da sua parte como que um endeusamento da sua auto-imagem em contraponto com os demais humanos. Esta aparente oposição entre o eu e o outro (humanidade) faz com que o sentimento de incompreensão, isolamento e desânimo a conduza a níveis de sofrimento intelectual profundos, que ela alimenta ao longo da sua vida.
Revê-se no olhar do seu cão como se de um ser humano se tratasse. Vê no olhar do seu cão sentimentos humanos como ternura, dúvida e ansiedade, parecendo ver nesses olhos o que procura nos humanos sem encontar.
Mais à frente no diário, volta à ideia, “o olhar de um bicho comove-me mais profundamente que um olhar de um humano”. Deixa no ar um certo desencanto e desilusão em relação aos sentimentos manifestados pelos humanos.
O seu irmão morto, a quem chama “o meu amigo morto,” é por várias vezes referido no seu diário, parecendo o único ser humano que mais se aproxima de si em termos de qualidades humanas. A sua ausência faz com que se sinta ainda mais só.
Ao mesmo tempo que fala da morte de tempos idos e de amigos da sua juventude, remete-nos para um filho seu, não um filho de carne e osso pelo qual não manifesta muito apego, mas sim a um …” que é apenas amor nos meus braços”. Mais uma vez nos parece que para Florbela, que está tão próxima dos deuses e de tudo o que é superior, um filho de carne e osso não seria o desejável mas sim um onde o AMOR no seu sentido mais amplo e grandioso se pudesse manifestar. Um deus filho de uma deusa.
Numa das anotações mais célebres de Florbela, o seu elevado auto-conceito ou a ideia que ela faz de si própria, revela-se de uma forma evidente. Como queria o seu pai que ela fosse feliz se essa felicidade só se atinge através da simplificação, da diminuição, sendo que ela, ser inteligente, não poderia utilizar estes métodos. Só lhe restava ser o “náufrago que se revolta” “ num mar imenso de ondas, de espumas, de destroços”. Para Bela a sua condição de mulher inteligente não lhe permitiria nunca ser feliz, pois a inteligência segundo ela nunca serviu para tornar ninguém feliz.
A morte é por ela encarada de frente. Fala dela como se de algo muito familiar se tratasse. Não entende o medo que se possa sentir da morte, porque para ela a morte parece ser algo libertador com que se coroa a vida.
Vê a loucura, “gostaria de endoidecer”, como uma forma de legitimar os seus sonhos “não saberia sequer que os meus sonhos eram sonhos”. Manifesta o desejo de o mundo estar povoado de verdades. O que só seria possível se fosse doida. “Ser doido é a única forma de possuir e a maneira de ser alguma coisa de firme neste mundo”
Ainda em Fevereiro (mês em que mais anotações faz no seu diário), refere-se aos atributos que considera necessários ao homem para que seja amado; ter coragem, vontade e energia. Ainda na mesma altura, escreve uma afirmação indecifrável “Ah, ser homem e um belo impossível trancar-me um caminho por onde eu quisesse passar” Terá a ver com a gestão paradoxal do “belo impossível” com o facto do caminho desejado e portanto impossível de lhe fugir por lhe estar trancado? Não havendo assim, hipótese de se desviar do caminho pelo qual quer passar?!... E o facto de aspirar a ser homem? Facilitar-lhe-ia o acesso a esse caminho trancado no final do qual está o “belo impossível ?” ficam aqui todas estas dúvidas na interpretação desta ideia.
Florbela manifesta a estima por si própria independentemente dos outros a terem ou não por si. Afasta-se igualmente da ideia de mediocridade, dizendo “Que importa a mediocridade do mundo se Eu sou Eu?” logo a seguir mostra a sua relação desprendida entre a vida e a morte “Que importa o desalento da vida se há a morte?” A morte representa aqui a libertação do desalento que a vida lhe provoca.

A incoerência que para Florbela a vida tem, faz com que ponha dúvida do real da vida, não será um sonho? Será que estamos a sonhar e portanto a dormir e que um dia acordaremos desse sono e encontraremos Deus? “será a esse despertar que os católicos chamam Deus?”
Em Março numa das duas vezes em que escreve no decorrer deste mês, imagina-se princesinha sentada num terraço rodeada de animais, flores, brinquedos, bonecos, etc., particularidade interessante é o facto de não existirem nem crianças nem adultos neste mundo de sonho que Florbela imagina. Apesar deste quadro que inicialmente lhe confere prazer, termina a ideia dizendo que no final se aborrece e fica horas a “cismar num outro mundo onde houvesse brinquedos maiores, mais belos e mais sólidos”. Por mais prazer e satisfação que certas coisas lhe deem, passado pouco tempo quer sempre mais e mais. O que traduz o seu permanente descontentamento com a vida terrena.
Em Abril, olha-se ao espelho e não gosta do que vê. Faz uma comparação entre a figura grosseira e feia que vê por antítese à beleza dos versos que escreve, “E esta amálgama grosseira e feia, grotesca e miserável, saberia fazer versos?”
Em Julho, na única reflexão que faz, fala-nos na mentira e na verdade e da dificuldade em encontrar palavras específicas para caracterizar separadamente um e outro conceito. “Tão pobres que somos que as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verdade!” quereria ela também dizer que a mesma cara? Os mesmos gestos, as mesmas expressões? Quereria ela falar da impossibilidade que por vezes existe em identificar o verdadeiro do falso?
Em Agosto reforça com uma simples, única e breve frase o seu sentimento de profunda solidão, que revê-la nesta caracterização de si própria, “eterna isolada”.
Ao se aproximar de Dezembro a sua escrita vai sendo cada vez mais magra e reveladora de um desejo que lhe vai na alma. “A morte definitiva ou a morte transfiguradora? Mas que importa o que está para além?
«seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida!»”
Finalmente as últimas palavras que escreve no seu diário revelam um desinvestimento e um desinteresse completo pela vida. A ausência da possibilidade do novo na sua vida, foi para Florbela uma morte antecipada. Ela chega ao final da sua vida com um sentimento profundo de que não há mais nada que a vida lhe possa trazer. “E não haver gestos novos nem palavras novas!”
Parece não existir dúvidas do que Florbela vem desejando e talvez planeando (quem sabe?) em relação ao seu fim.
CONCLUSÃO
A morte anunciada ao longo da sua escrita ocorrerá pouco depois. Põe fim à vida em 8 de Dezembro de 1930, dia em que faz trinta e seis anos, em Matosinhos, onde vive. Aí é enterrada sendo mais tarde trasladada para a sua terra natal.
Com Florbela morre, não talvez a maior poetisa do seu tempo, mas uma das que mais agudamente e sem temor exprimiu as grandes contradições da sensibilidade feminina nas suas paixões. Ao mesmo tempo, com uma certa ingenuidade, impregnada das verdades simples ou complexas do que é a mulher, na convergência da cultura e do ser.
Que conduz Florbela para a morte?
Fernanda de Castro, em escrito citado por Carlos Sombrio, sintetiza a resposta: "Porque nunca soube pôr de acordo o seu corpo, o seu espírito e a sua alma".
Do acontecimento os jornais quase não dão notícia. Fá-lo-ão a partir daí.
Postumamente são publicadas, por iniciativa do professor Guido Batelli, como atrás se diz, os dois livros de poemas Charneca em Flor e Reliquiae, duas colectâneas de contos, Dominó Negro e Máscara do Destino e uma outra de poesia, Juvenilia.Começo de uma sucessão de reedições que no caso da poesia alcança já, em alguns casos, a ordem das três dezenas, ou mais, se recordarmos a dispersão editorial.
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